sábado, 26 de novembro de 2011

Meu pai

Meu pai chegou ao Brasil, vindo do Líbano, no início dos anos 30. Seu irmão mais velho viera na frente uns anos antes . Conseguiu abrir uma loja de armarinhos no centro da cidade de Assis, o negócio prosperou e estabilizado, mandou buscar a família.Meu pai tinha por volta de dezoito anos e logo que chegou iniciou sua vida de mascate. Enchia duas malas de cortes de tecido,alpargatas,perfumes baratos,aviamentos, brinquedos e outras bugigangas e, a cavalo, ia para a zona rural. Nessa época, a maior parte da população vivia nos sítios e meu pai garantia suas vendas indo até as propriedades, exibia suas mercadorias e ganhava a vida assim, debaixo de sol ou de chuva,protegendo-se, quando chovia e ainda estava na estrada, debaixo das árvores. Às vezes, a noite vinha surpreendê-lo em algum sítio e ele pedia comi da e pouso que ele pagava ao sair dali,no outro dia.
Que mudança se passou em sua vida! Vinha de uma aldeia onde, com sua família, cultivavam uva, trigo,azeitonas, levavam as cabras e ovelhas para pastar... Não tinham dinheiro;a obtenção de algum produto que lhes faltava, era na base da troca.A vida era rudimentar e sem perspectiva de melhora.O Brasil era a terra da prosperidade,a terra prometida, onde o dinheiro era fácil e a vida tranqüila, sem ameaça de conflitos, como dizia a propaganda que fazia o governo brasileiro para atrair imigrantes.O Líbano, assim como os países vizinhos, tinha uma história de conflitos, de interferências estrangeiras, de disputas religiosas. O melhor era mesmo se aventurar por outras terras e mudar de vida.
O tempo se encarregou de mostrar que uma vida melhor tinha que ser conquistada com trabalho duro, mas um certo tino comercial que parecia fazer parte da cultura árabe e uma cidade ainda incipiente nesse setor foram impulsionando sua vida.Montou uma loja com o dinheiro que juntou em suas andanças como mascate e se estabeleceu na Vila Operária.Passou a morar aí também, na casa que fazia conjunto com a loja, juntamente com a mãe e os irmãos. Meu tio havia dado umas cabeçadas e perdeu a loja, uma das primeiras da cidade.Passou a fazer pequenos negócios e a ter uma vida meio boêmia, sem ter muito compromisso com a família. Meu pai,pessoa muito responsável e amorosa,assumiu a incumbência de tomar conta da família, particularmente da mãe, já idosa e doente.Casou-se com uma certa idade, talvez devido ao encargo que já tinha de prover as necessidades da família.
Teve quatro filhos, criou-os, tirando da loja o sustento da família que formara, da mãe e de seus irmãos.Não foi uma tarefa fácil garantir o sustento de tanta gente.Os tempos eram outros e a loja,outrora com tantos fregueses e próspera, já tinha que competir com grandes casas comerciais que abriram na avenida. As pessoas preferiam comprar nesses locais centrais, de visual mais modernizado, de propaganda no rádio, a comprar numa loja de bairro, um tanto acanhada para o gosto mais exigente dos consumidores.Meu pai sofreu o impacto das transformações econômicas dos anos 50 e 60 que imprimiram um ritmo acelerado no desenvolvimento do país. Não conseguiu adequar a sua loja aos novos tempos que foi aos poucos se consumindo. Prateleiras com espaços vazios, raros fregueses que muitas vezes não enc ontravam o que precisavam; não havia capital para repor as mercadorias.A loja entrou em franca decadência. Nada mais havia a se fazer;o único caminho era fechá-la. Foi assim que em 1970, meu pai cerrou as portas da loja.Nesse meio tempo, quando a situação ficou muito grave, meu pai vendeu um terreno e uma sala de comércio que alugava. Colocou o dinheiro a juro e daí tirava o sustento da família. Por sorte, meu irmão e eu começamos a trabalhar.
Essa trajetória que culmina com uma situação desfavorável no aspecto econômico, nada representou diante da figura humana que foi meu pai. Veio de longe, enfrentou situações adversas, inclusive com relação ao idioma, completamente estranho à sua língua de origem. Cultura,culinária, hábitos diferentes,tudo ele enfrentou com a serenidade e paciência que caracteriza as pessoas generosas de coração. Frequentou um curso noturno, onde aprendeu a ler,a escrever e a fazer contas.Precisava dessas habilidades para desenvolver seus negócios. Assim, era comum vê-lo com um jornal nas mãos, lendo as notícias, principalmente sobre as questões políticas internacionais, que ele dominava nos detalhes.
Contava-nos sobre a sua vida na distante aldeia do Líbano,da casa feita de pedra, da morte prematura do pai, da tia que ficara tomando conta da propriedade que deixaram para trás. Percebia-se o tom de nostalgia em suas palavras, mas a vontade de voltar,se é que a teve um dia, foi afastada pela consciência de uma vida que construíra aqui, com mulher, filhos, amigos. Suas raízes estavam bem infiltradas nesta terra que lhe proporcionou as coisas essenciais da vida: o amor dos filhos, um nome digno, o respeito de todos.Essa foi a grande riqueza que ele acumulou nesta terra.
Sua terra de origem volta e meia vinha em sua lembrança e ele cantava os versos de uma música, possivelmente folclórica, que até hoje vêm em minha mente quando me lembro dele: “Tat!l zeitoune/ neme ayune”(Debaixo da árvore de azeitonas/Dorme meu amor).

sábado, 22 de outubro de 2011

Tardes fagueiras

Preparava-se o domingo no sábado. O bolo, o pudim, as roupas engomadas para a missa das oito, o frango condenado ciscando no terreiro até a sua derradeira hora da qual corríamos para não vê-lo esperneando depois que a vizinha torcia-lhe o pescoço. Momento desagradável nesses preparativos para o dia festivo.
A vida então parecia um ritual que se cumpria religiosamente, sem acontecimentos inesperados para interromper a disciplina instituída. Nada para romper a cadência normal dos dias. Mas essas vésperas dos domingos eram vividas com a felicidade nos corações. Eram a promessa da comida gostosa e farta, da roupa que alimentava a vaidade, da matinê e do sorvete de coco queimado, sabor que nunca mais foi o mesmo, por mais que sorveterias se espalhassem pela cidade. Procura do sabor perdido.
Meu pai fazendo a barba com a calma das pessoas de coração leve, as batidinhas do aparelho de barbear na pia... Minha mãe abrindo o forno para vigiar os doces, e o quintal imenso, pés descalços na terra, e a laranjeira abraçando-nos com a ternura dos seus galhos e a doçura de suas frutas.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Prezado Xico Sá,
Li o seu pedido de casamento a Luísa Brunet e achei-o lindo. Muito bem escrito, com uns toques meio a Vinícius, meio a Rubem Braga. Tenho certeza de que a Luísa vai ficar lisonjeada e se sentir uma Deusa com tanta devoção e humildade dirigidas a ela. Você ficou mesmo de joelhos, prometendo coisas simples, mas poéticas para essa criatura tão excepcional.
Não sei se ela aceitará o pedido; isso vai ficar a critério dela. Talvez num primeiro momento ela fique impressionada com tanta submissão a sua pessoa e acabe marcando um encontro com você para tomar uma champagne ou um vinho antigo. Porque ela é como vinho antigo, os anos passam e ela fica cada vez mais bonita e apetitosa, conforme a mensagem subliminar que deduzi de seu texto. Agora, daí pra frente, tenho minhas dúvidas se ela vai apreciar ir a uma sessão vespertina de cinema e depois saírem de mãos dadas tendo "o sol por testemunha". Receio também que a vida atribulada de musa eterna da moda não lhe tenha permitido acompanhar a "longevidade criativa" de Woody Allen, nem tenha se permitido gargalhar das cenas memoráveis de seus filmes, nem se encantar com os velhos jazz, parte infalível de suas trilhas sonoras.
Não quero jogar água fria nas suas intenções tão meigas, mas desconfio também que ela não seja muito chegada nessa cozinha caipira com a qual você vai brindá-la. Picadinho de carne com ovo "poché" me soa meio estranho quando se associa à figura esguia e altiva da La Brunet. Gisele Bundchen acho que arriscaria.
"Massagens no ego" também não a seduziriam, desculpe a franqueza, pois, na minha humilde opinião, ela nunca me pareceu ter essa carência. Já fez até novela na Globo, mesmo não sendo do ramo... Sugeriria, se me permite, umas sessões no fonoaudiólogo, pois percebo nela uma leve dificuldade na articulação das palavras.
Portanto, meu caro Xico, ou você muda o seu discurso para cortejar a Luísa, ou você vai perdê-la para outro menos poético e mais objetivo. Digamos para aquele que vai mais ao ponto, sem divagações líricas.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Olhos Azuis

Faz muito tempo e ainda me lembro daaqueles olhos azuis. Um azul claro, contrastando com a pele levemente morena. Era como um lago azul, profundo, que parecia atrair para um mergulho nele. Fiquei tocada por aquele olhar, ainda mais que o rapaz tinha um ar sereno, combinando com a mansidão daquele lago estampado no rosto.
Ele tomava conta de um bazar para o pai, no caminho de casa, portanto passava por ali várias vezes ao dia e procurava por aqueles olhos azuis e ansiava ver neles algum sinal que me induzisse a pensar que também ele se impressionara comigo. Mas era ilusão de garota ingênua: aquele olhar nada dizia de importante para mim. Olhava pelo hábito de olhar algo comum que cruza o nosso olhar. E como nenhuma palavra sairia de minha boca para chamar sua atenção, ficava nas minha idas e vindas somente no exercício de contemplar aquele azul puríssimo. Restou para mim o exercício de contemplar o Belo. Como um quadro que se olha, analisa, aprecia, mas que não se pode tocar, nem levar para casa. Era um quadro pendurado na parede, acessível aos olhos, mas intocável.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

"Misty"

MISTY

“Misty” era uma música cantada infalivelmente todo ano na Faculdade de Filosofia, durante a apresentação das “Noites de Música e Poesia”,que aconteciam nos idos dos anos 60. Talentos musicais e poéticos de alunos e professores eram colocados à mostra nessas ocasiões.
A música italiana que havia invadido as rádios e competia com a Música Popular Brasileira, comparecia nessas noites culturais e uma interpretação belíssima de “La nostra casa encima al mondo” até hoje me vem à lembrança. A moça que cantou essa música tinha uma voz potente que invadiu o anfiteatro e arrepiou a platéia. Havia um professor que lia seus poemas longos e eruditos e sempre os oferecia à sua mulher, musa eterna.
Mas o momento mais esperado por mim, razão principal de meu comparecimento a todas as apresentações era a hora de “Misty”. Era um rapaz numa cadeira de rodas que cantava outras músicas, mas essa ele nunca deixava de cantar. Para ele essa música devia ter um significado profundo porque era repetida todos os anos e sua interpretação, em surdina, um tanto sensual, hipnotizava por um momento quem a ouvia. São muitos os intérpretes dessa música “standard”americana, mas nenhum conseguiu atingir a minha sensibilidade como a interpretação daquele rapaz. Por isso “Misty” ficou marcada em minha vida e me lembra o cantor, o clima de magia,a sensação de prazer, naquele anfiteatro à meia-luz, naqueles longínquos anos 60.

sábado, 4 de junho de 2011

Pássaros

O que faço com esses pássaros que cantam na árvore que fica em frente à minha janela e que me convidam, com sua alegria, a me encantar pela vida, a dar voos como eles em busca do prazer de viver? Essas criaturas, que aumentam à medida que os galhos vão crescendo e se espalhando, tomando conta do jardim, invadindo o telhado, são um lembrete de que há alegria, apesar de todo desencanto,de toda ilusão perdida, de tanto tempo passado, esbanjado, mal empregado.
Seguir seu exemplo, parecem me dizer. Cantar, pular pelos galhos, descer ao chão, alçar voos mais altos, incitando os companheiros a segui-los em sua dança no ar?
Alma de passarinho: leveza, inquietude, gozar a brisa, o sol, a chuva, enfrentar o tempo. Lição aos nossos olhos: é só querer aprender com a inocência de quem tem o mundo pela frente,de quem pode dominar tudo, alcançar tudo e ainda poder cantar.

sábado, 2 de abril de 2011

Hormônios

Descobri, sem estudos e pesquisas,sem resultados estatísticos e comprovações científicas,mas somente pela observação e sensações,que o entusiasmo pela vida e tudo que ela oferece de prazeroso, dependem dos hormônios. Olha que descoberta fantástica!
Chegada a idade madura, em que os hormônios vão se rareando, em que a libido quase chega ao grau zero, em que a imagem que está lá no espelho lhe mostra um rosto um tanto estranho, com marcas que foram chegando e se instalando sem pedir licença, você
sente a vida peder seu brilho e vigor. Nada mais é vivido com o ardor e a paixão de outrora, a vida vai mostrando a sua verdadeira face, triste e finita.
Por que essa reviravolta? Onde está a capacidade de se apaixonar pelas coisas, pelas pessoas, por uma roupa, um sapato, um perfume? Onde está a vaidade razoável que nos impelia a percorrer lojas, vitrines, boutiques? E aquela vontade de conhecer novos lugares, países, culturas? Nada disso mais. Alguma coisa falta dentro desse corpo para inflamar os sentidos, atirar-se sem medo a novas aventuras,experimentar outros sabores, ousar, iludir-se. São os hormônios que já não existem e com eles se foi a "joie de vivre".

sábado, 26 de março de 2011

Perversidade

A sala de aula era feminina; ainda me lembro de algumas meninas que estudavam ali. Uma de família importante; naquela época todas as classes sociais estudavam em escola pública. Essa vivia mostrando sua superioridade para as mais humildes. Havia uma outra, um tanto agressiva, que tínhamos medo de chegar perto dela. Mas havia uma aluna de que nunca vou me esquecer. Era mirradinha, cabelos ralos e claros, fininhos. Era a imagem da fragilidade. Sentava-se em uma das carteiras próxima á minha. Eu tinha uma espécie de preocupação com ela, vendo-a tão desprotegida e marcada por uma carência física a olhos vistos.Não bastasse tudo isso, ainda não tinha os dentes da frente. A impressão que dava é que tivera graves problemas de desenvolvimento. Parecia um ser incompleto.
Naquele tempo, professor, salvo alguns, tinha certa arrogância, superioridade pela posição social de que desfrutava. Tinha o prestígio que foi se perdendo ao longo do tempo. Mas, naquela época, eram vaidosos de sua profissão. Os alunos eram olhados do alto da soberba de seus mestres; precisávamos do conhecimento deles, que nos ofereciam como que por deferência especial.
A professora dessa turma, além da vaidade que a profissão lhe concedia, era casada com homem rico, de nome importante na cidade. E, como isso não bastasse, era de uma beleza e elegância que chamavam a atenção. Há pessoas que, com todas essas qualidades, conservam a humildade de quem tem a consciência de que são iguais a todo mundo, de quem se sente irmão de seu próximo, de que beleza, posição, dinheiro, nada disso as difere dos outros mortais.
Mas não, essa levava a sério todos os privilégios que recebera na vida e fazia valer seus atributos. E do alto de seu sapato,geralmente alto, que a deixava mais longe ainda dos pequeninos, tratava os alunos quando não com ironia, com desprezo.
Foi assim que certo dia, sem que a coitada da menina nada fizesse que lhe chamasse a atenção, chegou perto dela e disse-lhe que pronunciasse a palavra "farofa". A menina, sem saber de pronto o porquê da solicitação feita assim, de surpresa, tentou pronunciar a palavra, mas sem sucesso, pois com a falta dos dentes da frente, não conseguia articular o som de "f". Mas assim mesmo ela continuava a insistir na pronúncia, já bastante angustiada, pois não obteve êxito.
A professora ria, diante da aflição da aluna. E eu, observando a cena, compreendi, com revolta, a intenção malévola da professora: divertir-se com a dificuldade da menina em pronunciar uma palavra que, por mais que se esforçasse, não conseguiria. A minha vontade era fazer alguma coisa, não deixá-la prosseguir naquela tortura. Mas, criança ainda, não sabia como agir diante daquela perversidade.
Anos e anos já se passaram, encontro de vez em quando essa professora na rua e me vem à lembrança o quanto ela fez uma aluna sofrer. E me pergunto: SErá que um dia essa professora analisou sua atitude covarde com um pobre ser, frágil e completamente desprotegida de sua insensibilidade? Não lhe passou na cabeça pedir perdão se não à menina, pelo menos a Deus por um ato tão desprezível? Ou existem pessoas que não mudam no decorrer da vida, continuam orgulhosos e incapazes de uma auto-análise?

quarta-feira, 16 de março de 2011

Paisagem agredida

Ando pelas ruas da cidade. Gosto de sentir o vento, o sol, a brisa, ver a cor do céu, a chuva caindo. Caminhar traz uma sensação da vida correndo nas veias, da vida pulsando nas ruas. Caminhar é seguir em frente, apesar de tudo.
Ultimamente ando olhando para baixo durante meu trajeto e todas essas sensações boas vão aos poucos se desfazendo, dando lugar a um desencanto, uma sensação de impotência, revolta até. A paisagem passa a ser ameaçadora, ao invés de poética. Os pássaros continuam cantando, a brisa ainda vem resfriar meu rosto, mas o que vejo aos meus pés e até onde minha vista alcança é desolador. É o lixo fazendo parte da paisagem, mais precisamente o plástico, em todas as suas modalidades. Copos grandes, pequenos, médios, de sorvete, de iogurte, embalagens das mais variadas espécies, garrafas pets de todo o tamanho e forma, sacolas de supermercados, lojas, açougues, como se ali já se fizesse a publicidade do comércio da cidade. É a passagem insana dos homens pelas ruas da cidade, expondo a sua total inconsequência, a sua leviandade com o espaço público que, por ser público, pensa que é só dele e não de todos. Que inteligência é essa que passa por uma família, por uma escola, por leituras, por informações na mídia, e que não percebe que um simples gesto seu pode acarretar graves consequências, uma delas a dengue?
Deve-se esse comportamento a séculos de inoperância do poder público que nunca investiu como devia em Educação, às falhas na formação da mentalidade do bem coletivo, à rapinagem de políticos que, desde os tempos coloniais usurparam do povo o direito à dignidade, à educação, à cultura?
São questões que vão me passando na mente, na tentativa de tirar do povo o peso desse comportamento primitivo, justificando pela História do país ações já viciadas e que , pelo que se depreende do estilo de se governar, vão demorar muito a se tornarem civilizadas.
E eu continuo minhas caminhadas, observando a paisagem que herdamos.

quarta-feira, 9 de março de 2011

" Carnaval, desengano/ Deixei a dor em casa me esperando/ E gritei e cantei/ Vestido de rei/ Quarta-feira sempre desce o pano..." Chico Buarque soube, com a capacidade que sempre teve, traduzir o sentido do carnaval: a alegria rompendo as barreiras impostas pela sociedade e todos como irmãos,dando-se as mãos e entrando na dança. São alguns dias em que se deixam as tristezas, os problemas de lado e nos deixamos entregar á alegria, ao ritmo frenético dos sambas, dos frevos, do axé. São dias em que se anestesia com a bebida, mandamos embora a timidez, estabelece-se contato com aquela pessoa que, em tempos normais, jamais se teria a ousadia. É o efeito catártico do Carnaval: o super-ego é empurrado para os confins do cérebro ou da "psyché" e a liberdade é sem freios.
Mas são poucos os dias; a vida nos chama: quarta-feira desce o pano e a festa se rende à realidade. Por issso que o carnaval já traz dentro dele o desengano.
Não deixa de ser a metáfora da vida: alegria hoje, confraternização, somos todos irmãos por instantes, nos deixamos iludir pelos doces momentos que parece vão ser eternos, mas o pano cai, a vida nos chama. Felicidade é ilusão: a dor está em casa esperando, como diz o poeta.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Educação, o filme

O filme "An Education" (Educação) mostra a vida de uma estudante na Londres dos anos 60 que, muito aplicada, prepara-se para uma vaga na Universidade de Harvard. Conhece um rapaz, mais velho que ela, quando um dia, no ponto de ônibus para casa, começa a chover e ele lhe oferece carona. Começa aí uma amizade que à medida que passa o tempo, vai se transformando num relacionamento mais sério.
O rapaz faz negócios escusos junto com um amigo: adquire toda sorte de objetos que têm valor no mercado através de artimanhas enganosas e os revende, obtendo grandes lucros. Oferece à garota uma vida glamourosa: passeios caros,óperas,visitas a museus de arte, restaurantes requintados. Ela não percebe ou procura ignorar a origem do dinheiro que lhe permite tanto luxo e novas experiências, inclusive estéticas, que ela, como pessoa voltada ao estudo, tanto aprecia. Ele acaba se aproximando dos pais da moça que também se deixam seduzir pelo charme que a riqueza confere às pessoas.
A boa vida, cheia de surpresas, regada a champagne e lugares sofisticados como uma viagem a Paris, que faz com o rapaz, acaba por fazer a garota questionar a importãncia da educação que está recebendo na escola e que culminará numa vida acadêmica que lhe renderá, no máximo, um cargo de professora. Vislumbrar esse tipo de vida, prosaico e sensabor, comparado aos momentos quase mágicos que estava vivendo naqueles momentos, levam-na a rejeitar a escola depois de uma discussão com a diretora que tenta abrir-lhe os olhos sobre a ilusão que está vivendo e a solidez e dignidade de uma vida voltada para a Educação. Depois de um pedido de casamento feito pelo rapaz, ela acaba por abandonar seus planos de se preparar para Harvard e abandona a escola. Atitude facilmente aceita pelos pais que até então, sempre cobraram dela uma carreira de estudos. Agora, diante da perspectiva de um casamento rico, abandonaram também o sonho de ver a filha formada.
Entretanto, ela acaba descobrindo que o rapaz tinha uma família e que a enganara, assim como outras. Ela vê seu mundo ruir: nem casamento e nem mais chances de voltar para a escola. Acaba por se consolar e se lança ao estudo, sozinha em casa, na esperança de conseguir uma vaga em Harvard. Obtém êxito e é chamada pela Universidade para estudar língua e literatura. Mas ela já não é mais a mesma menina ingênua,virgem e inexperiente que fora tempos atrás. Já estava marcada por novas vivências, conflitos; conhecia melhor o caráter das pessoas, a capacidade que elas têm de ser dissimuladas, de se deixar levar pelo poder do dinheiro. A experi~encia que teve, apesar de amarga, não deixou de ser uma Educação.
Mas, em última análise, o filme deixa a conclusão de que a outra Educação, a da escola, do estudo, da cultura é que vai dar a segurança, o verdadeiro sentido para a vida. O resto é ilusão.
O filme "An Education" (Educação) mostra a vida de uma estudante na Londres dos anos 60 que, muito aplicada, prepara-se para uma vaga na Universidade de Harvard. Conhece um rapaz, mais velho que ela, quando um dia, no ponto de ônibus para casa, começa a chover e ele lhe oferece carona. Começa aí uma amizade que à medida que passa o tempo vai se transformando num relacionamento mais sério.
O rapaz faz negócios escusos junto com um amigo: adquire toda sorte de objetos que têm valor no mercado através de artimanhas enganosas e os revende, obtendo grandes lucros. Oferece à garota uma vida glamourosa: passeios caros,óperas,visitas a museus de arte, restaurantes requintados. Ela não percebe ou procura ignorar a origem do dinheiro que lhe permite tanto luxo e novas experiências, inclusive estéticas, que ela, como pessoa voltada ao estudo, tanto aprecia. Ele acaba se aproximando dos pais da moça que também se deixam seduzir pelo charme que a riqueza confere às pessoas.
É nesse ponto que o filme mostra

carnaval

Já se sente o carnaval no ar. Mas não esse carnaval reduzido a espetáculo, a sambas-enredo que exploram temas por gente intelectualizada, com pesquisas profundas, designers , estilistas. O Carnaval que disputa celebridades para rainha da bateria. Enfim, o Carnaval-empresa, de preferência para turistas.
Não, não é esse o Carnaval que sinto. Sinto com nostalgia o carnaval de minha infância, carnaval de rua, embalado pelas marchinhas que continuam impregnadas na memória dos mais antigos. Carnaval do confete, da serpentina,do lança-perfume,

da avenida movimentada,dos carros desfilando de capota abaixada, do alto-falante enchendo as ruas com o som dos sambas "Iá, iá, cadê o jarro?/ O jarro que eu plantei a flor?/ Eu vou lhe contar um caso/Eu quebrei o jarro/E matei a flor"; "Lata d'água na cabeça/Lá vai Maria/Lá vai Maria/ Sobe o morro e não se cansa...". E muitas outras marchinhas nascidas de poetas do povo, com assuntos da vivência do dia a dia.
E as fantasias? Pierrô, Colombina, Pirata, Cigana... Via passar pela minha rua os pais levando os filhos fantasiados às matinês do clube. A alegria desses dias era um sentimento consentido, uma pausa para um relaxamento preguiçoso, para não se pensar em nada, quando muito na melhor forma de espirrar água nas pessoas que passavam e sair correndo sem ser pego.
Era assim, antigamente, quando havia mais magia, mais inocência e menos vaidade.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Sorvete de abacaxi

Estão demolindo mais um prédio no centro da cidade. Logo, logo quem há muito não visita Assis não vai reconhecer a cidade. Cada dia é um prédio que botam abaixo.
Hoje passei por lá: ao lado da Praça da Bandeira. Funcionou ali, tempão atrás um bar. Não era um bar qualquer: tinha um atrativo especial: o dono fazia um sorvete de abacaxi que se tornou famoso porque não era feito com a essência da fruta; era da própria fruta e, nas mordidas, vinham pedaços de abacaxi, para comprovar a autenticidade. Quem daquela época não experimentou?
Era também ali em frente que, nos anos 60, tomava-se o ônibus para ir à Faculdade de Filosofia. E enquanto o ônibus não vinha, o dono vendia o seu sorvete de abacaxi para a moçada que ficava ali em frente ou na praça. O lugar tinha um zunzum alegre e jovial nos horários de saída e chegada da faculdade. Eram conversas, encontros efusivos, risos, um ponto marcante na vida ainda pacata da cidade.
Agora de manhã, quando passei e vi a construção transformada em entulhos no chão,não deixei de lembrar dessa época. Tempos em que se preparava para a vida, em que se construíam sonhos, projetos. E o sorvete de abacaxi fez parte dessa época. Permanece na lembrança gustativa desse tempo.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Batida de Maracujá

Não era fácil passar por uma tremenda paixão sem ser correspondida. Telefonemas, coincidências planejadas de encontros e a fingida surpresa: "Você por aqui?", visitas ao pai doente, nada surtia efeito. E as lamúrias vinham, as lágrimas eram copiosas, enquanto conversávamos naquele velho Volks 70. E por que não dizer, a raiva incontida pela mulher que merecia a atenção dele, o seu tempo, o seu amor. Ou interesse? Era isso que a fazia triste. "A outra" era poderosa. Tinha o pai rico, além do mais o charme dos olhos puxados de japonesa bonita.
Eu sofria com ela, mas tinha o receio de dizer-lhe que não valia a pena, deixá-lo para lá, com aquele ar de superioridade, quando estava perto dela. Foram anos assim, nesse sofrimento, naquela paixão que se aguçava à medida que a indiferença dele aumentava. Ela era inteligente, devia se valorizar, fazer desabrochar a beleza que tinha, mas que se escondia na simplicidade da roupa, na contenção dos gestos, na timidez da insegurança. Eram coisas que,hoje penso, deveria ter-lhe dito, mas eu também tinha o constrangimento das pessoas também tímidas e inseguras, que buscava, como ela, alguém para uma companhia, um namoro, talvez um amor. Sem dúvida, éramos, as duas, carentes do afeto masculino.
E à noite, depois das aulas, rodávamos, uma vez no meu carro, outra no carro dela, as ruas já desertas da cidade. Falávamos do trabalho, dos alunos, dos problemas familiares e caíamos, infalivelmente, nos assuntos amorosos. Procurávamos bares ainda abertos, para tomar um chope, comer alguma coisa, prosear e, sem dúvida, procurar entre os notívagos, alguém disponível para conversarmos, conhecermos, e, quem sabe até iniciar um romance. Mas como era difícil para nós, mulheres com o jeito de sérias, compenetradas e bem comportadas. Na verdade, acho que metíamos medo ao primeiro olhar; dávamos a impressão de mulheres inabordáveis, as duas ali, parecendo auto-suficientes e bem resolvidas. Hoje penso assim, mas, na época, saíamos desses lugares bem desanimadas, nos sentindo rejeitadas e incapazes.
Uma noite, depois do trabalho, percorremos as ruas centrais da cidade à procura de algum restaurante aberto. Os costumeiros já tinham fechado, mas insistimos na procura . Encontramos um, que dificilmente frequentávamos; não era das melhores, mas resolvemos entrar, movidas pela solidão que apertava àquela hora adiantada,os bares fechados, ninguém pelas ruas, só o vento e o frio a nos fazerem companhia. Não me recordo muito bem, mas devia ter alguém cantando uns boleros antigos, poucos fregueses bebendo, solitários nas mesas vazias. O cenário era um tanto decadente, os garçons já meio sonolentos, incomodados com a chegada de fregueses retardatários.
Procuramos uma mesa e pedimos batida de maracujá. Com pinga. Combinava com o ambiente, não muito familiar. Queríamos passar a impressão de mulheres mais atrevidas e liberadas. (Não podemos perder de vista que estávamos nos anos 70). Vieram as batidas, e os frequentadores passaram a nos olhar com mais interesse. E os garçons, como estátuas, braços para trás, a nos observar também, de uma certa distância. O álcool começou a fazer efeito, já ríamos descontraídas, leves, achando a vida bela e a felicidade acessível, por que não? A questão é que à medida que bebíamos, mais sentíamos o efeito do álcool. Comentamos que aquilo estava forte demais, mas já havíamos quase que esgotado os copos. A preocupação agora era: como sair dali andando, se já sentíamos a cabeça rodar, as pernas bambas, sem força? E a vergonha, diante das poucas pessoas que estavam a nos observar, como alvo principal? Pagamos, criamos coragem, e, de braços dados, segurando o riso, saímos. Tinha um corredor longo até chegar à rua e, já longe da vista dos fregueses e garçons, despencamos a rir e a andar, meio capengas até o carro. Até hoje tenho minhas dúvidas sobre o caso. Acho que os garçons exageraram no álcool para se divertir conosco ou para demonstrarem um certo preconceito contra aquelas duas mulheres inconvenientes e petulantes, que chegaram tarde e ainda pediram batida de maracujá com pinga. Era muita ousadia.

Velha Foto

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Eu vi a foto e ela me trouxe à memória os velhos tempos do Instituto de Educação. Estavam na escadaria, os professores e funcionários posando para uma máquina. Antigos rostos, antigos sons, velhas lições, a menina que eu era, no ano de 59; tudo isso se presentificou com a visão da foto. Estavam lá, alguns sorrindo, outros, sérios. Expressões que ficaram ali, cristalizadas para a eternidade. Alguns sei que já não existem mais,de outros ainda se têm notícias. Mas e o restante, quem sabe? Estarão "dormindo profundamente", como disse o poeta? O sorriso meio irônico de dona Ivone Yared estava lá, a seriedade constrangedora de dona Mirtes também. A beleza inesquecível de Seu José Dantas, o rosto inconfundivelmente árabe de Tufi Jubran, a expressão professoral de seu Mário Novaes, uma funcionária, de quem não lembro o nome, com seus óculos e os cabelos presos para cima, Seu Clóvis Corradi, tão jovem ainda, Dona Loyde, doce, como sempre, e elegante. Com certeza estava de meias de seda e saltos altos.Seu Luís D'Arcádia, "manso e humilde de coração", Jorge Cury, ar de crítica. Ele era implacável,realmente. E muitos outros, que compunham o mundo que vivemos, tempos atrás. Era um dia de inverno, casacos compridos, como que sendo movidos pelo vento, tailleurs, ternos.Será que alguém chegou a pensar que muitos anos se passariam e aquele momento ficaria para a posteridade? Que os anos passariam e um dia ex-alunos estariam olhando aquela foto, tentando reconhecer as fisionomias, lembrando-se das particularidades de cada um deles? E de como marcaram indelevelmente nossas mentes e corações?
Fizeram parte de nossas vidas, pautávamos nossos horários, nossos passeios, nossos prazeres e desprazeres, segundo a orientação ou, talvez, a exigência deles. Tinha um filme bom anunciado, mas tinha que estudar Latim? Nada de cinema. O melhor era ficar repetindo à exaustão o "sum, es, est, sumus, estis, sunt". "Tempus fugit" era a inscrição de um relógio de uma loja que não existe mais. Hoje, vendo essa foto, me lembrei dela: o tempo fugiu depressa como aquele vento que soprava naquele dia em que os professores e funcionários, todos perfilados nos degraus da escadaria, posaram para uma foto, naquele ano de 1959.

Aula de Música

Ia começar a aula de música, tortura das torturas. Iniciantes do ginásio, tínhamos que saber a posição das notas musicais, identificar as fusas, semifusas e as "cafusas", como dizíamos brincando. Além do mais, tinha o diapasão. O som que a professora soprava nele podia nos dizer se a pauta iniciaria pela clave do "dó" ou do "sol". Tudo era uma questão de ouvido que nós, talvez por algum problema auditivo não identificado, não conseguíamos decifrar. O mais torturante ainda era o ditado rítmico: a professora dava umas batidas com o lápis na mesa e tínhamos que saber, pelas diferenças mínimas de tempo, que nota colocar na pauta.Para mim eram só batidas,que eu ia transformando em notas, a esmo, sem noção do que fazia. Onde estava a música? E eu que pensava que aula de música era para cantar, encher a sala, os corredores e o nosso coração da alegria que a música traz... Não, tínhamos que saber a teoria musical, para depois cantar.
A professora chegava , assim como a angústia na minha garganta e na das minhas colegas de infortúnio que engrossavam a fileira das analfabetas musicais. As alunas que aprendiam piano no Consevatório nadavam de braçada nessas aulas. Perdidas, ficávamos ali, sentindo que não éramos capazes de alcançar algo no plano do divino, do metafísico. Éramos, com certeza, seres inferiores.
Um dia, uma colega teve uma idéia: íamos atrás de uma moça que tocava muito bem acordeão. Quem sabe ela poderia nos ajudar? Chegamos em sua casa, no fundão de minha vila. Demos uma idéia a ela de nossa confusão. Luzia, era seu nome, tentou nos ajudar, à sua maneira, um pouco surpresa com a maneira estranha de se aprender música. Esclareceu-nos alguma coisa. No dia seguinte seria o exame.
No outro dia, o infalível ditado rítmico. E a clave? A professora soprou o diapasão. Seria o "dó"? Ou seria o "sol"? Desenhei a clave do sol; era mais bonito. E lá vieram as batidas que eu ia colocando na pauta, sem nenhuma fé em mim. Saí dali sem esperança; a professora, uma esfinge,mal nos olhava do alto de seu saber tão nobre. Queria vê-la cantando. Como seria a sua voz?
Dias depois, fui ver o resultado. Passara a noite acordada, pensando em reprova, olheiras fundas. E o medo da repreensão em casa, a vergonha do fracasso? Mas estava ali: Nota 9,0. Por mais que passem os anos, nunca vou acreditar nessa nota. Ou Deus guiou minha mão, ou a professora teve um repente de pena de nosso sofrimento.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

O tempo é sábio

Curioso como o tempo vai retirando de nós, pouco a pouco, os prazeres que nos davam a alegria de viver. Você vai selecionando tudo: pessoas, lugares, músicas, filmes, livros, autores. Aquilo que antes te enchia de emoção, hoje já não tem graça nenhuma. E a vida vai ficando cada vez mais vazia. Não me seduz o discurso de que devemos preencher a vida com atividades, passeios, vida social, viagens... A questão deve ser uma tendência natural do ser humano que, em tempos mais jovens se deixava iludir por um ou outro motivo. É explicável que tendo a perspectiva de um longo tempo pela frente, o seu tempo de vida ainda não foi o bastante para experimentar as dores do viver, as angústias das perdas, do tempo que se esvai, de histórias experimentadas que vão virando névoas. Histórias que parecem ter sido vividas por outra pessoa. Tem-se a impressão de que somos meros personagens que vão trocando os papéis ao longo da existência.
Nessa vida tudo tem uma razão de ser. Existe uma sabedoria implícita nessa marcha implacável do tempo: vamos nos desligando gradativamente das coisas, nos preparando para o adeus.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Dama da Noite

Saí lá fora e senti seu perfume. Até q enfim consegui aprisionar em minha casa o perfume da "dama da Noite". Ele povoou minha infância. Passava à noite pela rua João Pessoa, pouco mais à frente de dobrar a praça da Bandeira e ele vinha com toda intensidade . Como era bom : o cheiro inebriava: não conseguia ver a árvore que oferecia aquela dádiva a nós que passávamos; o muro era alto.Mas envolvia boa parte do trajeto.. Alguém falava: É a Dama da Noite!. A mim, ainda pequena, aquele nome soava como algo misterioso: "Dama da Noite!" Tinha uma conotação pertencente a um mundo meio que escuso e proibido. Era a dama que frequentava as noites e de comportamento não muito recomendável. Isso aumentava ainda mais o fascínio pelo perfume e pela flor. Cresci,farejando sempre dentre os perfumes que sentia, aquele encantado odor da "dama da Noite". Por vezes o identificava e vinham me assaltar, além da delícia olfativa, tudo que ela provocava: meus passeios na avenida ou ida ao cinema, visita a alguém, meus pais e irmãos que me acompanhavam, minha tia... E o trajeto invariável da volta, quando sentíamos o perfume da flor. Há pouco tempo, passando à noite em frente a uma casa, lá estava ela: a "Dama da Noite". Não resisti; enfiei a mão por sobre o muro e arranquei um galho pequeno. Plantei-o, descrente de q um dia eu pudesse ter ao meu alcance aquela planta divina. E não é que ela vingou? E agora à noite, indo ao quintal, chegou-me seu perfume, assim, de repente. Resgatei um pouco os tempos vividos naquele trajeto perfumado como são talvez os caminhos da infância: apesar de algumas tristezas, tudo era esquecido e a vida era doce como aquele perfume que tanto persegui e agora o tenho aqui mesmo, no meu quintal.