quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Um piano, uma banheira, uma voz.

Um piano, uma banheira, uma voz.
Algumas coisa me encantavam naquela casa vizinha. Havia uma moça que cantava à noite, enquanto lavávamos a louça. A voz era linda. Ficava ali a ouvi-la. Depois ela ia para o piano e seus toques enchiam a   noite de beleza. A voz e o piano elevavam aquela criatura a um nível superior. Sentia-a como um ser intocável, com algo de divino. Nós éramos prosaicos demais; me sentia vulgar diante daquele encantamento que desembocava na cozinha mambembe de minha casa.  A casa vizinha era diferente; tinha classe e algo de etéreo flutuando no espaço. E de longe ficávamos embebidos com manifestações tão superiores. Pensávamos assim naquela época. Era a banheira também que percebíamos num relance através da porta entreaberta do banheiro. Coisa chique. Talvez por isso, difícil era nos aproximar daquela criatura de qualidades tão raras. Percebia nela também aquele ar nobre que não se misturava com as meninas que havia por ali, carentes de dons e meios privilegiados. Enquanto vivemos na mesma rua, difíceis os momentos em que se estabelecia um relacionamento olho no olho altura com altura. Havia a voz, o piano, a banheira a nos separar.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Negócio fechado

A loja já não era a mesma. Empoeirada, vazios nas prateleiras que eu tentava disfarçar desfazendo pilhas de alguns artigos e tapando os buracos. Meu pai naquele seu jeito tranquilo, que nada abalava, pelo menos aparentemente. No fundo, quem sabe estava a olhar para aquela desolação, a fuga da clientela, o dinheiro minguando. Sentindo o fracasso, depois de anos de luta, de viagens nos lombos de cavalos pelos sítios e povoados, sob sol e chuva, depois a loja na cidade bem sortida e frequentada.
Mas a coisa não ia bem. O dinheiro que a loja rendia mal dava para repor a mercadoria que se vendia aos poucos. Em algum momento ele havia se perdido na condução do negócio e já não dava mais para acompanhar o ritmo do comércio que acontecia no centro da cidade e que atraía as pessoas do bairro onde estava a loja. As pessoas passavam por ali  para fazer compras na cidade e nós as víamos voltar com os pacotes comprados nos estabelecimentos mais atraentes do centro. Era com dor no coração que víamos a loja vazia nas noites que antecediam o Natal. As portas abertas à espera da freguesia e lá vinham as pessoas               que nós, alvoroçados, pensávamos que iam entrar, mas que passavam reto, indiferentes. Hoje penso quão triste foi para o meu pai sentir essa falência. Teve que fechar as portas do negócio, como chamávamos a loja.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Terezinha


Não sei se foi um ato de sadismo. A verdade é que fiz Terezinha chorar. Ainda revejo o lugar. O pátio da escola. Ela era um tanto alta para a idade, ou eu é que era baixa. Cabelos enrolados e pretos. Era até bonitinha. Tinha uma leve dificuldade no articular as palavras. Fiz amizade com ela. Isso era um tanto inexplicável, num tempo em que as pessoas traziam em si a marca sócio-econômica. O uniforme era o mesmo, mas o jeito, os gestos, a pele, um não-sei-quê,traíam a origem. Ela tinha aquele não-sei-quê revelador de uma classe social , como se dizia na época, melhor. E ficamos próximas, apesar das diferenças.
Naquela época, eu tinha descoberto a biblioteca da escola e era uma devoradora de livros. Tinha acabado de ler "Éramos Seis", e ficara tocada pelo livro, principalmente pelo personagem "Carlos", que no livro morre muito jovem, o que é narrado de maneira comovente pela mãe, a narradora da história. Queria, de alguma maneira, compartilhar aquele sentimento mesclado de prazer pelo livro e de tristeza pela morte do personagem. Resolvi contar a história para essa colega. Acho que coloquei em minhas palavras toda a comoção que havia experimentado com a história, e muito mais ênfase na cena da morte do personagem, que me havia conquistado durante a leitura. Incipiente leitora, me envolvia demais com as histórias e ficava dias sentindo repercutir em mim os dramas dos personagens por quem ficava apaixonada. Não é que empolgada pela minha própria narrativa, só fui perceber que minha colega estava chorando, quando a vi soluçando alto?  Confesso que fiquei preocupada e arrependida de ter provocado nela emoção tão forte e fiquei por um momento calada, pensando em como reparar aquele choro que provoquei, não sei se de propósito ou não. Hoje já não sei. O sino tocou, fomos para a aula. Na classe, vez ou outra olhava para ela para ver se já havia recuperado da minha investida um tanto cruel. Ela já ria.
Dias depois, vi entre seu material, o livro. Ela estava lendo. Naquele momento fiquei orgulhosa de mim. Não sei se ela se tornou leitora. A avaliação que fiz naquele tempo é que tinha conquistado alguém para os livros. Nunca mais soube dela, não sei se ela se lembra de mim. Talvez sim, se levarmos em consideração o fato de que nunca esquecemos daquilo que nos toca a sensibilidade. E eu naquele dia fiz Terezinha chorar.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Flores caídas

Devia ter uns treze ou quatorze anos. Andava pela Nove de Julho, não me lembro para onde. Acho que para a Avenida, tinha que fazer alguma coisa para meu pai.cabeça baixa, e introspectiva, como sempre. Era ainda adolescente, mas já sentia a dor da vida.Nada de grandes sonhos, grandes perspectivas. Prematuramente, já pressentia uma falta de sentido para a vida. Em frente a uma casa, a calçada estava forrada de flores amarelas. Acho que caídas de um ipê que beirava o muro. Estavam pisadas, mas formavam um belo tapete, cobrindo a calçada. Tive que andar também sobre elas para seguir meu caminho. Mas aquelas flores amarelo-ouro ficaram retidas em minha mente e me despertaram certa emoção. Achei que devia registrar aquela cena em um texto e passei a imaginar em que situação narrativa aquilo podia funcionar como cenário. Logo imaginei um casal de namorados que desfaziam seu relacionamento ali, naquele tapete dourado. Comecei a escrever a história deles, o encontro, a descoberta do amor e o desentendimento. Mas não consegui passar daí. Não me vinham idéias, motivos, os diálogos me pareciam chochos e sem graça. Animei-me a realizar uma grande história, tomada que estava pelo encntamento das flores caídas. Mas a empreitada não teve êxito. Ficaram ali as frases em um caderno velho, uma história começada, com pretensões de atingir a plenitude, mas a inspiração murchou, como murcharam a flores derrubadas pelo vento daquele ipê amarelo.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Oito meses não são oito dias

A janela do quarto dava para a rua. Ela tinha que dormir cedo. Os pais se recolhiam metodicamente após o jantar, ainda fazia um pouco de tricô, pois tinha prazo para desenrolar os novelos de lã de Dona Eugênia. Um pouco do romance que estava lendo e ia para o quarto. Não podia ficar até tarde; o pai implicava com a conta da luz.
E através da janela ouvia o casal que passava para cima e para baixo,conversando. Já reconhecia pela voz o par amoroso; há um bom tempo eles namoravam naquela rua. Era um tempo em que os namoros eram passeios de mãos dadas, com uma certa distãncia a separar o casal. Com certeza a moça devia morar pelos arredores, também. Não se podia ir muito longe. Elvira já sabia disso de cor, a vigilãncia sobre as moças era cerrada. Por isso estava ali, em pleno domingo, dormindo cedo, nada de cinema nem o "footing" na avenida. Isso era permitido só de vez em quando, acompanhada da irmã, com o irmão rondando por perto, zelador implacável da boa moral e comparsa declarado do pai a quem fazia o relatório completo das saídas das irmãs. Por isso nem olhavam para os lados, temendo a aproximação masculina. Isso daria uma grande confusão em casa, e o pai não era para brincadeiras. Namoro só em casa, assim mesmo se aprovasse o candidato em vários requisitos: raça, posses, profissão, caráter... Difícil encontrar a pessoa que ele aprovasse. Já tivera uma experiência dolorosa quando ainda mais jovem, ao se apaixonar por um vizinho. O pai proibiu o relacionamento; ela chorou, sofreu. Com o tempo a tristeza foi passando, mas, na verdade, ainda tinha a sensação de felicidade perdida.
nessa noite em que ouvia os passos e os sons da conversa do casal, percebeu uma certa diferença no tom de voz dos dos namorados. Iam e vinham, como sempre, mas alguma coisa incomum devia estar acontecendo. Um certo nervosismo, uma fala um tanto chorosa da moça. Elvira, em sua cama, atenta aos sons que há meses lhe eram familiares, vislumbrou ali um drama acontecendo. DE repente estacaram bem embaixo de sua janela. Nesse momento deu para ouvir com mais nitidez o que se passava: o rapaz estava rompendo com a moça. Ela, voz trêmula, parecia não se conformar com o fato. Dizia palavras de convencimento, alegava os tempos felizes; tomada pela emoção, deixando de lado seus pudores, quase que implorava ao rapaz que não a abandonasse. Elvira sentiu a tristeza da moça e condoeu-se. Num último apelo a moça disse, já chorando: "Oito meses não são oito dias!" O rapaz nada disse. O silêncio foi total. E Elvira ouviu-os se afastarem, passos desanimados, quase que arrastados, soando em seus ouvidos.

sábado, 26 de novembro de 2011

Meu pai

Meu pai chegou ao Brasil, vindo do Líbano, no início dos anos 30. Seu irmão mais velho viera na frente uns anos antes . Conseguiu abrir uma loja de armarinhos no centro da cidade de Assis, o negócio prosperou e estabilizado, mandou buscar a família.Meu pai tinha por volta de dezoito anos e logo que chegou iniciou sua vida de mascate. Enchia duas malas de cortes de tecido,alpargatas,perfumes baratos,aviamentos, brinquedos e outras bugigangas e, a cavalo, ia para a zona rural. Nessa época, a maior parte da população vivia nos sítios e meu pai garantia suas vendas indo até as propriedades, exibia suas mercadorias e ganhava a vida assim, debaixo de sol ou de chuva,protegendo-se, quando chovia e ainda estava na estrada, debaixo das árvores. Às vezes, a noite vinha surpreendê-lo em algum sítio e ele pedia comi da e pouso que ele pagava ao sair dali,no outro dia.
Que mudança se passou em sua vida! Vinha de uma aldeia onde, com sua família, cultivavam uva, trigo,azeitonas, levavam as cabras e ovelhas para pastar... Não tinham dinheiro;a obtenção de algum produto que lhes faltava, era na base da troca.A vida era rudimentar e sem perspectiva de melhora.O Brasil era a terra da prosperidade,a terra prometida, onde o dinheiro era fácil e a vida tranqüila, sem ameaça de conflitos, como dizia a propaganda que fazia o governo brasileiro para atrair imigrantes.O Líbano, assim como os países vizinhos, tinha uma história de conflitos, de interferências estrangeiras, de disputas religiosas. O melhor era mesmo se aventurar por outras terras e mudar de vida.
O tempo se encarregou de mostrar que uma vida melhor tinha que ser conquistada com trabalho duro, mas um certo tino comercial que parecia fazer parte da cultura árabe e uma cidade ainda incipiente nesse setor foram impulsionando sua vida.Montou uma loja com o dinheiro que juntou em suas andanças como mascate e se estabeleceu na Vila Operária.Passou a morar aí também, na casa que fazia conjunto com a loja, juntamente com a mãe e os irmãos. Meu tio havia dado umas cabeçadas e perdeu a loja, uma das primeiras da cidade.Passou a fazer pequenos negócios e a ter uma vida meio boêmia, sem ter muito compromisso com a família. Meu pai,pessoa muito responsável e amorosa,assumiu a incumbência de tomar conta da família, particularmente da mãe, já idosa e doente.Casou-se com uma certa idade, talvez devido ao encargo que já tinha de prover as necessidades da família.
Teve quatro filhos, criou-os, tirando da loja o sustento da família que formara, da mãe e de seus irmãos.Não foi uma tarefa fácil garantir o sustento de tanta gente.Os tempos eram outros e a loja,outrora com tantos fregueses e próspera, já tinha que competir com grandes casas comerciais que abriram na avenida. As pessoas preferiam comprar nesses locais centrais, de visual mais modernizado, de propaganda no rádio, a comprar numa loja de bairro, um tanto acanhada para o gosto mais exigente dos consumidores.Meu pai sofreu o impacto das transformações econômicas dos anos 50 e 60 que imprimiram um ritmo acelerado no desenvolvimento do país. Não conseguiu adequar a sua loja aos novos tempos que foi aos poucos se consumindo. Prateleiras com espaços vazios, raros fregueses que muitas vezes não enc ontravam o que precisavam; não havia capital para repor as mercadorias.A loja entrou em franca decadência. Nada mais havia a se fazer;o único caminho era fechá-la. Foi assim que em 1970, meu pai cerrou as portas da loja.Nesse meio tempo, quando a situação ficou muito grave, meu pai vendeu um terreno e uma sala de comércio que alugava. Colocou o dinheiro a juro e daí tirava o sustento da família. Por sorte, meu irmão e eu começamos a trabalhar.
Essa trajetória que culmina com uma situação desfavorável no aspecto econômico, nada representou diante da figura humana que foi meu pai. Veio de longe, enfrentou situações adversas, inclusive com relação ao idioma, completamente estranho à sua língua de origem. Cultura,culinária, hábitos diferentes,tudo ele enfrentou com a serenidade e paciência que caracteriza as pessoas generosas de coração. Frequentou um curso noturno, onde aprendeu a ler,a escrever e a fazer contas.Precisava dessas habilidades para desenvolver seus negócios. Assim, era comum vê-lo com um jornal nas mãos, lendo as notícias, principalmente sobre as questões políticas internacionais, que ele dominava nos detalhes.
Contava-nos sobre a sua vida na distante aldeia do Líbano,da casa feita de pedra, da morte prematura do pai, da tia que ficara tomando conta da propriedade que deixaram para trás. Percebia-se o tom de nostalgia em suas palavras, mas a vontade de voltar,se é que a teve um dia, foi afastada pela consciência de uma vida que construíra aqui, com mulher, filhos, amigos. Suas raízes estavam bem infiltradas nesta terra que lhe proporcionou as coisas essenciais da vida: o amor dos filhos, um nome digno, o respeito de todos.Essa foi a grande riqueza que ele acumulou nesta terra.
Sua terra de origem volta e meia vinha em sua lembrança e ele cantava os versos de uma música, possivelmente folclórica, que até hoje vêm em minha mente quando me lembro dele: “Tat!l zeitoune/ neme ayune”(Debaixo da árvore de azeitonas/Dorme meu amor).

sábado, 22 de outubro de 2011

Tardes fagueiras

Preparava-se o domingo no sábado. O bolo, o pudim, as roupas engomadas para a missa das oito, o frango condenado ciscando no terreiro até a sua derradeira hora da qual corríamos para não vê-lo esperneando depois que a vizinha torcia-lhe o pescoço. Momento desagradável nesses preparativos para o dia festivo.
A vida então parecia um ritual que se cumpria religiosamente, sem acontecimentos inesperados para interromper a disciplina instituída. Nada para romper a cadência normal dos dias. Mas essas vésperas dos domingos eram vividas com a felicidade nos corações. Eram a promessa da comida gostosa e farta, da roupa que alimentava a vaidade, da matinê e do sorvete de coco queimado, sabor que nunca mais foi o mesmo, por mais que sorveterias se espalhassem pela cidade. Procura do sabor perdido.
Meu pai fazendo a barba com a calma das pessoas de coração leve, as batidinhas do aparelho de barbear na pia... Minha mãe abrindo o forno para vigiar os doces, e o quintal imenso, pés descalços na terra, e a laranjeira abraçando-nos com a ternura dos seus galhos e a doçura de suas frutas.