quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Negócio fechado

A loja já não era a mesma. Empoeirada, vazios nas prateleiras que eu tentava disfarçar desfazendo pilhas de alguns artigos e tapando os buracos. Meu pai naquele seu jeito tranquilo, que nada abalava, pelo menos aparentemente. No fundo, quem sabe estava a olhar para aquela desolação, a fuga da clientela, o dinheiro minguando. Sentindo o fracasso, depois de anos de luta, de viagens nos lombos de cavalos pelos sítios e povoados, sob sol e chuva, depois a loja na cidade bem sortida e frequentada.
Mas a coisa não ia bem. O dinheiro que a loja rendia mal dava para repor a mercadoria que se vendia aos poucos. Em algum momento ele havia se perdido na condução do negócio e já não dava mais para acompanhar o ritmo do comércio que acontecia no centro da cidade e que atraía as pessoas do bairro onde estava a loja. As pessoas passavam por ali  para fazer compras na cidade e nós as víamos voltar com os pacotes comprados nos estabelecimentos mais atraentes do centro. Era com dor no coração que víamos a loja vazia nas noites que antecediam o Natal. As portas abertas à espera da freguesia e lá vinham as pessoas               que nós, alvoroçados, pensávamos que iam entrar, mas que passavam reto, indiferentes. Hoje penso quão triste foi para o meu pai sentir essa falência. Teve que fechar as portas do negócio, como chamávamos a loja.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Terezinha


Não sei se foi um ato de sadismo. A verdade é que fiz Terezinha chorar. Ainda revejo o lugar. O pátio da escola. Ela era um tanto alta para a idade, ou eu é que era baixa. Cabelos enrolados e pretos. Era até bonitinha. Tinha uma leve dificuldade no articular as palavras. Fiz amizade com ela. Isso era um tanto inexplicável, num tempo em que as pessoas traziam em si a marca sócio-econômica. O uniforme era o mesmo, mas o jeito, os gestos, a pele, um não-sei-quê,traíam a origem. Ela tinha aquele não-sei-quê revelador de uma classe social , como se dizia na época, melhor. E ficamos próximas, apesar das diferenças.
Naquela época, eu tinha descoberto a biblioteca da escola e era uma devoradora de livros. Tinha acabado de ler "Éramos Seis", e ficara tocada pelo livro, principalmente pelo personagem "Carlos", que no livro morre muito jovem, o que é narrado de maneira comovente pela mãe, a narradora da história. Queria, de alguma maneira, compartilhar aquele sentimento mesclado de prazer pelo livro e de tristeza pela morte do personagem. Resolvi contar a história para essa colega. Acho que coloquei em minhas palavras toda a comoção que havia experimentado com a história, e muito mais ênfase na cena da morte do personagem, que me havia conquistado durante a leitura. Incipiente leitora, me envolvia demais com as histórias e ficava dias sentindo repercutir em mim os dramas dos personagens por quem ficava apaixonada. Não é que empolgada pela minha própria narrativa, só fui perceber que minha colega estava chorando, quando a vi soluçando alto?  Confesso que fiquei preocupada e arrependida de ter provocado nela emoção tão forte e fiquei por um momento calada, pensando em como reparar aquele choro que provoquei, não sei se de propósito ou não. Hoje já não sei. O sino tocou, fomos para a aula. Na classe, vez ou outra olhava para ela para ver se já havia recuperado da minha investida um tanto cruel. Ela já ria.
Dias depois, vi entre seu material, o livro. Ela estava lendo. Naquele momento fiquei orgulhosa de mim. Não sei se ela se tornou leitora. A avaliação que fiz naquele tempo é que tinha conquistado alguém para os livros. Nunca mais soube dela, não sei se ela se lembra de mim. Talvez sim, se levarmos em consideração o fato de que nunca esquecemos daquilo que nos toca a sensibilidade. E eu naquele dia fiz Terezinha chorar.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Flores caídas

Devia ter uns treze ou quatorze anos. Andava pela Nove de Julho, não me lembro para onde. Acho que para a Avenida, tinha que fazer alguma coisa para meu pai.cabeça baixa, e introspectiva, como sempre. Era ainda adolescente, mas já sentia a dor da vida.Nada de grandes sonhos, grandes perspectivas. Prematuramente, já pressentia uma falta de sentido para a vida. Em frente a uma casa, a calçada estava forrada de flores amarelas. Acho que caídas de um ipê que beirava o muro. Estavam pisadas, mas formavam um belo tapete, cobrindo a calçada. Tive que andar também sobre elas para seguir meu caminho. Mas aquelas flores amarelo-ouro ficaram retidas em minha mente e me despertaram certa emoção. Achei que devia registrar aquela cena em um texto e passei a imaginar em que situação narrativa aquilo podia funcionar como cenário. Logo imaginei um casal de namorados que desfaziam seu relacionamento ali, naquele tapete dourado. Comecei a escrever a história deles, o encontro, a descoberta do amor e o desentendimento. Mas não consegui passar daí. Não me vinham idéias, motivos, os diálogos me pareciam chochos e sem graça. Animei-me a realizar uma grande história, tomada que estava pelo encntamento das flores caídas. Mas a empreitada não teve êxito. Ficaram ali as frases em um caderno velho, uma história começada, com pretensões de atingir a plenitude, mas a inspiração murchou, como murcharam a flores derrubadas pelo vento daquele ipê amarelo.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Oito meses não são oito dias

A janela do quarto dava para a rua. Ela tinha que dormir cedo. Os pais se recolhiam metodicamente após o jantar, ainda fazia um pouco de tricô, pois tinha prazo para desenrolar os novelos de lã de Dona Eugênia. Um pouco do romance que estava lendo e ia para o quarto. Não podia ficar até tarde; o pai implicava com a conta da luz.
E através da janela ouvia o casal que passava para cima e para baixo,conversando. Já reconhecia pela voz o par amoroso; há um bom tempo eles namoravam naquela rua. Era um tempo em que os namoros eram passeios de mãos dadas, com uma certa distãncia a separar o casal. Com certeza a moça devia morar pelos arredores, também. Não se podia ir muito longe. Elvira já sabia disso de cor, a vigilãncia sobre as moças era cerrada. Por isso estava ali, em pleno domingo, dormindo cedo, nada de cinema nem o "footing" na avenida. Isso era permitido só de vez em quando, acompanhada da irmã, com o irmão rondando por perto, zelador implacável da boa moral e comparsa declarado do pai a quem fazia o relatório completo das saídas das irmãs. Por isso nem olhavam para os lados, temendo a aproximação masculina. Isso daria uma grande confusão em casa, e o pai não era para brincadeiras. Namoro só em casa, assim mesmo se aprovasse o candidato em vários requisitos: raça, posses, profissão, caráter... Difícil encontrar a pessoa que ele aprovasse. Já tivera uma experiência dolorosa quando ainda mais jovem, ao se apaixonar por um vizinho. O pai proibiu o relacionamento; ela chorou, sofreu. Com o tempo a tristeza foi passando, mas, na verdade, ainda tinha a sensação de felicidade perdida.
nessa noite em que ouvia os passos e os sons da conversa do casal, percebeu uma certa diferença no tom de voz dos dos namorados. Iam e vinham, como sempre, mas alguma coisa incomum devia estar acontecendo. Um certo nervosismo, uma fala um tanto chorosa da moça. Elvira, em sua cama, atenta aos sons que há meses lhe eram familiares, vislumbrou ali um drama acontecendo. DE repente estacaram bem embaixo de sua janela. Nesse momento deu para ouvir com mais nitidez o que se passava: o rapaz estava rompendo com a moça. Ela, voz trêmula, parecia não se conformar com o fato. Dizia palavras de convencimento, alegava os tempos felizes; tomada pela emoção, deixando de lado seus pudores, quase que implorava ao rapaz que não a abandonasse. Elvira sentiu a tristeza da moça e condoeu-se. Num último apelo a moça disse, já chorando: "Oito meses não são oito dias!" O rapaz nada disse. O silêncio foi total. E Elvira ouviu-os se afastarem, passos desanimados, quase que arrastados, soando em seus ouvidos.