sábado, 26 de março de 2011

Perversidade

A sala de aula era feminina; ainda me lembro de algumas meninas que estudavam ali. Uma de família importante; naquela época todas as classes sociais estudavam em escola pública. Essa vivia mostrando sua superioridade para as mais humildes. Havia uma outra, um tanto agressiva, que tínhamos medo de chegar perto dela. Mas havia uma aluna de que nunca vou me esquecer. Era mirradinha, cabelos ralos e claros, fininhos. Era a imagem da fragilidade. Sentava-se em uma das carteiras próxima á minha. Eu tinha uma espécie de preocupação com ela, vendo-a tão desprotegida e marcada por uma carência física a olhos vistos.Não bastasse tudo isso, ainda não tinha os dentes da frente. A impressão que dava é que tivera graves problemas de desenvolvimento. Parecia um ser incompleto.
Naquele tempo, professor, salvo alguns, tinha certa arrogância, superioridade pela posição social de que desfrutava. Tinha o prestígio que foi se perdendo ao longo do tempo. Mas, naquela época, eram vaidosos de sua profissão. Os alunos eram olhados do alto da soberba de seus mestres; precisávamos do conhecimento deles, que nos ofereciam como que por deferência especial.
A professora dessa turma, além da vaidade que a profissão lhe concedia, era casada com homem rico, de nome importante na cidade. E, como isso não bastasse, era de uma beleza e elegância que chamavam a atenção. Há pessoas que, com todas essas qualidades, conservam a humildade de quem tem a consciência de que são iguais a todo mundo, de quem se sente irmão de seu próximo, de que beleza, posição, dinheiro, nada disso as difere dos outros mortais.
Mas não, essa levava a sério todos os privilégios que recebera na vida e fazia valer seus atributos. E do alto de seu sapato,geralmente alto, que a deixava mais longe ainda dos pequeninos, tratava os alunos quando não com ironia, com desprezo.
Foi assim que certo dia, sem que a coitada da menina nada fizesse que lhe chamasse a atenção, chegou perto dela e disse-lhe que pronunciasse a palavra "farofa". A menina, sem saber de pronto o porquê da solicitação feita assim, de surpresa, tentou pronunciar a palavra, mas sem sucesso, pois com a falta dos dentes da frente, não conseguia articular o som de "f". Mas assim mesmo ela continuava a insistir na pronúncia, já bastante angustiada, pois não obteve êxito.
A professora ria, diante da aflição da aluna. E eu, observando a cena, compreendi, com revolta, a intenção malévola da professora: divertir-se com a dificuldade da menina em pronunciar uma palavra que, por mais que se esforçasse, não conseguiria. A minha vontade era fazer alguma coisa, não deixá-la prosseguir naquela tortura. Mas, criança ainda, não sabia como agir diante daquela perversidade.
Anos e anos já se passaram, encontro de vez em quando essa professora na rua e me vem à lembrança o quanto ela fez uma aluna sofrer. E me pergunto: SErá que um dia essa professora analisou sua atitude covarde com um pobre ser, frágil e completamente desprotegida de sua insensibilidade? Não lhe passou na cabeça pedir perdão se não à menina, pelo menos a Deus por um ato tão desprezível? Ou existem pessoas que não mudam no decorrer da vida, continuam orgulhosos e incapazes de uma auto-análise?

Nenhum comentário:

Postar um comentário