Meu pai chegou ao Brasil, vindo do Líbano, no início dos anos 30. Seu irmão mais velho viera na frente uns anos antes . Conseguiu abrir uma loja de armarinhos no centro da cidade de Assis, o negócio prosperou e estabilizado, mandou buscar a família.Meu pai tinha por volta de dezoito anos e logo que chegou iniciou sua vida de mascate. Enchia duas malas de cortes de tecido,alpargatas,perfumes baratos,aviamentos, brinquedos e outras bugigangas e, a cavalo, ia para a zona rural. Nessa época, a maior parte da população vivia nos sítios e meu pai garantia suas vendas indo até as propriedades, exibia suas mercadorias e ganhava a vida assim, debaixo de sol ou de chuva,protegendo-se, quando chovia e ainda estava na estrada, debaixo das árvores. Às vezes, a noite vinha surpreendê-lo em algum sítio e ele pedia comi da e pouso que ele pagava ao sair dali,no outro dia.
Que mudança se passou em sua vida! Vinha de uma aldeia onde, com sua família, cultivavam uva, trigo,azeitonas, levavam as cabras e ovelhas para pastar... Não tinham dinheiro;a obtenção de algum produto que lhes faltava, era na base da troca.A vida era rudimentar e sem perspectiva de melhora.O Brasil era a terra da prosperidade,a terra prometida, onde o dinheiro era fácil e a vida tranqüila, sem ameaça de conflitos, como dizia a propaganda que fazia o governo brasileiro para atrair imigrantes.O Líbano, assim como os países vizinhos, tinha uma história de conflitos, de interferências estrangeiras, de disputas religiosas. O melhor era mesmo se aventurar por outras terras e mudar de vida.
O tempo se encarregou de mostrar que uma vida melhor tinha que ser conquistada com trabalho duro, mas um certo tino comercial que parecia fazer parte da cultura árabe e uma cidade ainda incipiente nesse setor foram impulsionando sua vida.Montou uma loja com o dinheiro que juntou em suas andanças como mascate e se estabeleceu na Vila Operária.Passou a morar aí também, na casa que fazia conjunto com a loja, juntamente com a mãe e os irmãos. Meu tio havia dado umas cabeçadas e perdeu a loja, uma das primeiras da cidade.Passou a fazer pequenos negócios e a ter uma vida meio boêmia, sem ter muito compromisso com a família. Meu pai,pessoa muito responsável e amorosa,assumiu a incumbência de tomar conta da família, particularmente da mãe, já idosa e doente.Casou-se com uma certa idade, talvez devido ao encargo que já tinha de prover as necessidades da família.
Teve quatro filhos, criou-os, tirando da loja o sustento da família que formara, da mãe e de seus irmãos.Não foi uma tarefa fácil garantir o sustento de tanta gente.Os tempos eram outros e a loja,outrora com tantos fregueses e próspera, já tinha que competir com grandes casas comerciais que abriram na avenida. As pessoas preferiam comprar nesses locais centrais, de visual mais modernizado, de propaganda no rádio, a comprar numa loja de bairro, um tanto acanhada para o gosto mais exigente dos consumidores.Meu pai sofreu o impacto das transformações econômicas dos anos 50 e 60 que imprimiram um ritmo acelerado no desenvolvimento do país. Não conseguiu adequar a sua loja aos novos tempos que foi aos poucos se consumindo. Prateleiras com espaços vazios, raros fregueses que muitas vezes não enc ontravam o que precisavam; não havia capital para repor as mercadorias.A loja entrou em franca decadência. Nada mais havia a se fazer;o único caminho era fechá-la. Foi assim que em 1970, meu pai cerrou as portas da loja.Nesse meio tempo, quando a situação ficou muito grave, meu pai vendeu um terreno e uma sala de comércio que alugava. Colocou o dinheiro a juro e daí tirava o sustento da família. Por sorte, meu irmão e eu começamos a trabalhar.
Essa trajetória que culmina com uma situação desfavorável no aspecto econômico, nada representou diante da figura humana que foi meu pai. Veio de longe, enfrentou situações adversas, inclusive com relação ao idioma, completamente estranho à sua língua de origem. Cultura,culinária, hábitos diferentes,tudo ele enfrentou com a serenidade e paciência que caracteriza as pessoas generosas de coração. Frequentou um curso noturno, onde aprendeu a ler,a escrever e a fazer contas.Precisava dessas habilidades para desenvolver seus negócios. Assim, era comum vê-lo com um jornal nas mãos, lendo as notícias, principalmente sobre as questões políticas internacionais, que ele dominava nos detalhes.
Contava-nos sobre a sua vida na distante aldeia do Líbano,da casa feita de pedra, da morte prematura do pai, da tia que ficara tomando conta da propriedade que deixaram para trás. Percebia-se o tom de nostalgia em suas palavras, mas a vontade de voltar,se é que a teve um dia, foi afastada pela consciência de uma vida que construíra aqui, com mulher, filhos, amigos. Suas raízes estavam bem infiltradas nesta terra que lhe proporcionou as coisas essenciais da vida: o amor dos filhos, um nome digno, o respeito de todos.Essa foi a grande riqueza que ele acumulou nesta terra.
Sua terra de origem volta e meia vinha em sua lembrança e ele cantava os versos de uma música, possivelmente folclórica, que até hoje vêm em minha mente quando me lembro dele: “Tat!l zeitoune/ neme ayune”(Debaixo da árvore de azeitonas/Dorme meu amor).
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