Ia começar a aula de música, tortura das torturas. Iniciantes do ginásio, tínhamos que saber a posição das notas musicais, identificar as fusas, semifusas e as "cafusas", como dizíamos brincando. Além do mais, tinha o diapasão. O som que a professora soprava nele podia nos dizer se a pauta iniciaria pela clave do "dó" ou do "sol". Tudo era uma questão de ouvido que nós, talvez por algum problema auditivo não identificado, não conseguíamos decifrar. O mais torturante ainda era o ditado rítmico: a professora dava umas batidas com o lápis na mesa e tínhamos que saber, pelas diferenças mínimas de tempo, que nota colocar na pauta.Para mim eram só batidas,que eu ia transformando em notas, a esmo, sem noção do que fazia. Onde estava a música? E eu que pensava que aula de música era para cantar, encher a sala, os corredores e o nosso coração da alegria que a música traz... Não, tínhamos que saber a teoria musical, para depois cantar.
A professora chegava , assim como a angústia na minha garganta e na das minhas colegas de infortúnio que engrossavam a fileira das analfabetas musicais. As alunas que aprendiam piano no Consevatório nadavam de braçada nessas aulas. Perdidas, ficávamos ali, sentindo que não éramos capazes de alcançar algo no plano do divino, do metafísico. Éramos, com certeza, seres inferiores.
Um dia, uma colega teve uma idéia: íamos atrás de uma moça que tocava muito bem acordeão. Quem sabe ela poderia nos ajudar? Chegamos em sua casa, no fundão de minha vila. Demos uma idéia a ela de nossa confusão. Luzia, era seu nome, tentou nos ajudar, à sua maneira, um pouco surpresa com a maneira estranha de se aprender música. Esclareceu-nos alguma coisa. No dia seguinte seria o exame.
No outro dia, o infalível ditado rítmico. E a clave? A professora soprou o diapasão. Seria o "dó"? Ou seria o "sol"? Desenhei a clave do sol; era mais bonito. E lá vieram as batidas que eu ia colocando na pauta, sem nenhuma fé em mim. Saí dali sem esperança; a professora, uma esfinge,mal nos olhava do alto de seu saber tão nobre. Queria vê-la cantando. Como seria a sua voz?
Dias depois, fui ver o resultado. Passara a noite acordada, pensando em reprova, olheiras fundas. E o medo da repreensão em casa, a vergonha do fracasso? Mas estava ali: Nota 9,0. Por mais que passem os anos, nunca vou acreditar nessa nota. Ou Deus guiou minha mão, ou a professora teve um repente de pena de nosso sofrimento.
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