A sala de aula era feminina; ainda me lembro de algumas meninas que estudavam ali. Uma de família importante; naquela época todas as classes sociais estudavam em escola pública. Essa vivia mostrando sua superioridade para as mais humildes. Havia uma outra, um tanto agressiva, que tínhamos medo de chegar perto dela. Mas havia uma aluna de que nunca vou me esquecer. Era mirradinha, cabelos ralos e claros, fininhos. Era a imagem da fragilidade. Sentava-se em uma das carteiras próxima á minha. Eu tinha uma espécie de preocupação com ela, vendo-a tão desprotegida e marcada por uma carência física a olhos vistos.Não bastasse tudo isso, ainda não tinha os dentes da frente. A impressão que dava é que tivera graves problemas de desenvolvimento. Parecia um ser incompleto.
Naquele tempo, professor, salvo alguns, tinha certa arrogância, superioridade pela posição social de que desfrutava. Tinha o prestígio que foi se perdendo ao longo do tempo. Mas, naquela época, eram vaidosos de sua profissão. Os alunos eram olhados do alto da soberba de seus mestres; precisávamos do conhecimento deles, que nos ofereciam como que por deferência especial.
A professora dessa turma, além da vaidade que a profissão lhe concedia, era casada com homem rico, de nome importante na cidade. E, como isso não bastasse, era de uma beleza e elegância que chamavam a atenção. Há pessoas que, com todas essas qualidades, conservam a humildade de quem tem a consciência de que são iguais a todo mundo, de quem se sente irmão de seu próximo, de que beleza, posição, dinheiro, nada disso as difere dos outros mortais.
Mas não, essa levava a sério todos os privilégios que recebera na vida e fazia valer seus atributos. E do alto de seu sapato,geralmente alto, que a deixava mais longe ainda dos pequeninos, tratava os alunos quando não com ironia, com desprezo.
Foi assim que certo dia, sem que a coitada da menina nada fizesse que lhe chamasse a atenção, chegou perto dela e disse-lhe que pronunciasse a palavra "farofa". A menina, sem saber de pronto o porquê da solicitação feita assim, de surpresa, tentou pronunciar a palavra, mas sem sucesso, pois com a falta dos dentes da frente, não conseguia articular o som de "f". Mas assim mesmo ela continuava a insistir na pronúncia, já bastante angustiada, pois não obteve êxito.
A professora ria, diante da aflição da aluna. E eu, observando a cena, compreendi, com revolta, a intenção malévola da professora: divertir-se com a dificuldade da menina em pronunciar uma palavra que, por mais que se esforçasse, não conseguiria. A minha vontade era fazer alguma coisa, não deixá-la prosseguir naquela tortura. Mas, criança ainda, não sabia como agir diante daquela perversidade.
Anos e anos já se passaram, encontro de vez em quando essa professora na rua e me vem à lembrança o quanto ela fez uma aluna sofrer. E me pergunto: SErá que um dia essa professora analisou sua atitude covarde com um pobre ser, frágil e completamente desprotegida de sua insensibilidade? Não lhe passou na cabeça pedir perdão se não à menina, pelo menos a Deus por um ato tão desprezível? Ou existem pessoas que não mudam no decorrer da vida, continuam orgulhosos e incapazes de uma auto-análise?
sábado, 26 de março de 2011
quarta-feira, 16 de março de 2011
Paisagem agredida
Ando pelas ruas da cidade. Gosto de sentir o vento, o sol, a brisa, ver a cor do céu, a chuva caindo. Caminhar traz uma sensação da vida correndo nas veias, da vida pulsando nas ruas. Caminhar é seguir em frente, apesar de tudo.
Ultimamente ando olhando para baixo durante meu trajeto e todas essas sensações boas vão aos poucos se desfazendo, dando lugar a um desencanto, uma sensação de impotência, revolta até. A paisagem passa a ser ameaçadora, ao invés de poética. Os pássaros continuam cantando, a brisa ainda vem resfriar meu rosto, mas o que vejo aos meus pés e até onde minha vista alcança é desolador. É o lixo fazendo parte da paisagem, mais precisamente o plástico, em todas as suas modalidades. Copos grandes, pequenos, médios, de sorvete, de iogurte, embalagens das mais variadas espécies, garrafas pets de todo o tamanho e forma, sacolas de supermercados, lojas, açougues, como se ali já se fizesse a publicidade do comércio da cidade. É a passagem insana dos homens pelas ruas da cidade, expondo a sua total inconsequência, a sua leviandade com o espaço público que, por ser público, pensa que é só dele e não de todos. Que inteligência é essa que passa por uma família, por uma escola, por leituras, por informações na mídia, e que não percebe que um simples gesto seu pode acarretar graves consequências, uma delas a dengue?
Deve-se esse comportamento a séculos de inoperância do poder público que nunca investiu como devia em Educação, às falhas na formação da mentalidade do bem coletivo, à rapinagem de políticos que, desde os tempos coloniais usurparam do povo o direito à dignidade, à educação, à cultura?
São questões que vão me passando na mente, na tentativa de tirar do povo o peso desse comportamento primitivo, justificando pela História do país ações já viciadas e que , pelo que se depreende do estilo de se governar, vão demorar muito a se tornarem civilizadas.
E eu continuo minhas caminhadas, observando a paisagem que herdamos.
Ultimamente ando olhando para baixo durante meu trajeto e todas essas sensações boas vão aos poucos se desfazendo, dando lugar a um desencanto, uma sensação de impotência, revolta até. A paisagem passa a ser ameaçadora, ao invés de poética. Os pássaros continuam cantando, a brisa ainda vem resfriar meu rosto, mas o que vejo aos meus pés e até onde minha vista alcança é desolador. É o lixo fazendo parte da paisagem, mais precisamente o plástico, em todas as suas modalidades. Copos grandes, pequenos, médios, de sorvete, de iogurte, embalagens das mais variadas espécies, garrafas pets de todo o tamanho e forma, sacolas de supermercados, lojas, açougues, como se ali já se fizesse a publicidade do comércio da cidade. É a passagem insana dos homens pelas ruas da cidade, expondo a sua total inconsequência, a sua leviandade com o espaço público que, por ser público, pensa que é só dele e não de todos. Que inteligência é essa que passa por uma família, por uma escola, por leituras, por informações na mídia, e que não percebe que um simples gesto seu pode acarretar graves consequências, uma delas a dengue?
Deve-se esse comportamento a séculos de inoperância do poder público que nunca investiu como devia em Educação, às falhas na formação da mentalidade do bem coletivo, à rapinagem de políticos que, desde os tempos coloniais usurparam do povo o direito à dignidade, à educação, à cultura?
São questões que vão me passando na mente, na tentativa de tirar do povo o peso desse comportamento primitivo, justificando pela História do país ações já viciadas e que , pelo que se depreende do estilo de se governar, vão demorar muito a se tornarem civilizadas.
E eu continuo minhas caminhadas, observando a paisagem que herdamos.
quarta-feira, 9 de março de 2011
" Carnaval, desengano/ Deixei a dor em casa me esperando/ E gritei e cantei/ Vestido de rei/ Quarta-feira sempre desce o pano..." Chico Buarque soube, com a capacidade que sempre teve, traduzir o sentido do carnaval: a alegria rompendo as barreiras impostas pela sociedade e todos como irmãos,dando-se as mãos e entrando na dança. São alguns dias em que se deixam as tristezas, os problemas de lado e nos deixamos entregar á alegria, ao ritmo frenético dos sambas, dos frevos, do axé. São dias em que se anestesia com a bebida, mandamos embora a timidez, estabelece-se contato com aquela pessoa que, em tempos normais, jamais se teria a ousadia. É o efeito catártico do Carnaval: o super-ego é empurrado para os confins do cérebro ou da "psyché" e a liberdade é sem freios.
Mas são poucos os dias; a vida nos chama: quarta-feira desce o pano e a festa se rende à realidade. Por issso que o carnaval já traz dentro dele o desengano.
Não deixa de ser a metáfora da vida: alegria hoje, confraternização, somos todos irmãos por instantes, nos deixamos iludir pelos doces momentos que parece vão ser eternos, mas o pano cai, a vida nos chama. Felicidade é ilusão: a dor está em casa esperando, como diz o poeta.
Mas são poucos os dias; a vida nos chama: quarta-feira desce o pano e a festa se rende à realidade. Por issso que o carnaval já traz dentro dele o desengano.
Não deixa de ser a metáfora da vida: alegria hoje, confraternização, somos todos irmãos por instantes, nos deixamos iludir pelos doces momentos que parece vão ser eternos, mas o pano cai, a vida nos chama. Felicidade é ilusão: a dor está em casa esperando, como diz o poeta.
Assinar:
Postagens (Atom)